sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Corpo e Cristianismo


CORPO E CRISTIANISMO

O corpo na contemporaneidade é exaltado a ponto de as identidades serem definidas em função de certa retomada de um vitalismo difuso na forma de uma estética da boa saúde e da boa forma. Em certo sentido este fenômeno é uma “invenção” da Cultura Somática ocidental graças aos últimos avanços das ciências, sobretudo da biologia e da informática. Estas passaram a exercer forte impacto sobre o “imaginário” do corpo e, consequentemente, da investigação e da compreensão hodierna a respeito da condição carnal do ser humano. Entretanto, apesar da hipervalorização do corpo associada ao advento do “indivíduo” em detrimento da pessoalidade do ser humano, o fenômeno cultural anuncia certo paradoxo. De um lado o corpo nunca esteve tão em voga ou em evidência se comparado a outras épocas e outras culturas. De outro, a cultura contemporânea corre o risco de reduzir o corpo à mera condição performática e de interpretá-lo a partir de uma estética objetal em que seus aspectos exteriores suplantam a fecundidade da interioridade vivida e sentida bem como a socialidade ou a narratividade da condição humana encarnada.

O cristianismo, por sua vez, identifica-se a uma religião no sentido eminentemente simbólico que a palavra comporta enquanto realidade capaz de religar (religare) o real. Nele, o humano e o divino se aproximam de maneira inédita e se significam graças ao que se denomina de Evento Cristo. Pelo fato de a Encarnação do Filho de Deus (Jo. 1,1) ser considerada eixo central da confissão de fé cristã, o cristianismo anuncia uma autência revolução a respeito da experiência humana do corpo na medida em que enaltece a carnalidade como lugar da experiência “de” Deus. Para o cristianismo, o Deus de Jesus revela-se ao mesmo tempo em que assume a humanidade desde a encarnação do Verbo. Nesta perspectiva o cristianismo é avesso aos neodualismos que repovoam o imaginário do corpo e do sexo do homem da cultura somática contemporânea.

Portanto, o corpo é considerado lugar por excelência no qual o Deus dos cristãos experimenta a humanidade por dentro. Ele contrái com a humanidade uma cumplicidade corpórea tal a ponto de tornar a carne humana lugar da revelaçao da interioridade do próprio Deus. Na perspectiva cristã o simbolismo do corpo excede toda a significação anterior: em Jesus de Nazaré o Verbo se faz carne reconciliando o humano e o divino sem separação e sem confusão, sem, contudo perder sua mundaneidade, isto é, sem qualquer traço de espiritualismo abstrato e desencarnado. Em termos antropológicos, significa dizer que o Verbo (palavra) assume a carne humana para que nossa humanidade se torne um “corpo de carne”, isto é, que o corpo não seja privado de transformar-se numa carnalidade humano-divina. Nesse sentido, referir o humano à carnalidade significa outrossim voltar-se à significação genuinamente humana do corpo que só a carne pode assegurar. A carne, portanto, assume a significação que transcende os aspectos meramente exteriores do corpo humano, sem contudo negar sua dimensão material.

A visão do cristianismo coincide, em certo sentido, com aquilo que a corrente filosófica da Fenomenologia propugna quando trata de recuperar o sentido do humano em função da significação filosófica da corporeidade. A saber, mais do que uma realidade biológica, genética, neurológica, morfológica ou do corpo reduzido a um conjunto orgânico bem articulado, a corporeidade diz respeito à própria identidade do ser humano e, por isso, visa a superar qualquer visão objetivista ou pragmática que tenda a reduzir o ser humano a uma coisa. Contra a visão do racionalismo ou do empirismo que de tempos em tempos voltam à baila no cenário da cultura contemporânea, a Fenomenologia insiste no caráter fenomenológico e ontológico do corpo. Por isso, sua preocupação em afirmar que o ser humano não apenas “tem” um corpo, mas de que ele “é” seu corpo: um corpo próprio, um corpo-sujeito, um corpo vivido e um corpo-relação. Uma vez inserido e jogado no âmbito das significações da vida - para o qual o corpo expressa a única possibilidade de o sujeito estar no mundo - o ser humano-corpo vê-se constantemente afetado, tocado e até mesmo alterado em sua própria identidade. O ser humano enquanto corpo, embora gerado de outrem e, portanto, como dom, percebe-se ao mesmo tempo como tarefa: graças à experiência de se fazer carne “no” mundo (vivido) e tornar-se carne “do” mundo, ele assume a dimensão carnal como constitutiva de realização plena de sua humanidade.

Graças à visão do corpo de que partilha o cristianismo, é possível dizer que ele é um autêntico humanismo da encarnação. Afinal, enaltece a carne como lugar da morada de Deus entre os seres humanos e afirma-se como um elogio à carne ao considerá-la como lugar da humanização da humanidade em Deus.

possui mestrado em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana (1993), doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (1999). Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Ética Fundamental e Ética da Sexualidade. Está chegando à UNICAP, onde deverá também colaborar no Mestrado em Ciências da Religião.
(Artigo publicado originalmente aqui no site dos jesuítas portugueses).

2 comentários:

  1. Júlio, admiro muito você a acho ótima essa postagem sobre corpo. Tenho minhas dúvidas se realmente o advento da biologia e tecnologia são os culpados nessa supervalorização do corpo ou se é a mídia, ou se são todos esses aspectos juntos...vamos descobrir...

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  2. Kiko, seu texto é belíssimo. O corpo como Morada de Deus e ao mesmo tempo sendo Humano, nos garante que algum dia vivenciaremos uma Humanidade mais Justa! Beijos.

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